E.L. Doctorow, meu escritor favorito

Foi na universidade que conheci o meu escritor preferido, e eu guardo essa lembrança como guardo as melhores lembranças da minha vida.

Cursei História¹ por falta de opção, não é muito bonito dizer isso mas foi assim que aconteceu. Sempre me interessei pelas ciências humanas, mesmo que de forma não muito próxima, e não tinha desejo algum de me envolver com cursos técnicos (não que eu não seja bom com números), nem com aquelas profissões tradicionais (burramente, eu tinha esse pensamento que se deve trabalhar apenas com aquilo que se gosta, burramente pois trabalho é fazer dinheiro, muito, de preferência), nem muito menos com as da moda (essas profissões da tal geração Y). Daí que passei no meu primeiro vestibular e cursei História na federal do Maranhão – novamente, sem motivo especial, escolhi História por ser de humanas, e só, passou até pela cabeça fazer letras, mas não fiz, pelo menos não nessa primeira tentativa de entrar na universidade, fiz um ano mais tarde na estadual daqui, mas larguei tão logo percebi o curso como realmente era e não como eu pensava ou queria que fosse – era apenas um curso pra formar professores de línguas e literatura naquele formato magistério, sabe, aquele lance de escola, de teor limitado, funcional e etc. Enfim, fiz História. Fiz bacharelado pelo trabalho de pesquisa. Não faz muito tempo terminei uma especialização, História Cultural.

Eu cursei História no exato momento em que acontecia no Brasil uma mudança de paradigma (uh!) na estruturação teórica do conhecimento: o Marxismo acadêmico cedia lugar ao Pós-Modernismo em tudo quanto é área. Lá no curso o negócio foi pesado, uma avalanche de conceitos, embates, autores, livros, etc. Daí que folheando um desses tantos livros sobre Pós-Modernismo encontrei esse da canadense Linda Hutcheon, “Poética do Pós-Modernismo”, que faz uma retrospectiva do conceito (pós-modernismo) aplicado principalmente à literatura da última metade do séc. XX, discussões, livros, autores… e aqui que eu o encontro.

E.L. Doctorow é americano de ascendência russa, e um dos literatos vivos mais premiados lá nos EUA. Membro das principais academias americanas de arte, ciências, filosofia e letras. Autor mundialmente conhecido pelo romance “Ragtime”, eleito um dos 100 melhores romance do século XX pela Modern Library. Meu primeiro contato com ele foi com “O Livro de Daniel”, provavelmente o livro que mais reli na vida, por motivos diversos, explico mais adiante. Os dois romances citados são respectivamente o quarto e o terceiro por ele publicados, ambos foram transformados em filmes – aliás, esse é outro aspecto da trajetória literária de Doctorow que merece destaque: muitos dos seus romances foram adaptados para o cinema (ao entrar em contato com as obras dele fica fácil entender o porquê), ainda não assisti a nenhum, por preguiça ou por pouca curiosidade mesmo, admito. Desde sua estreia com “Tempos Difíceis” em 1960, Doctorow coleciona alguns best-sellers, sendo traduzido em mais de 30 línguas. É ou não é um histórico de respeito?

O motivo que me faz eleger E.L. Doctorow como meu escritor favorito é simples, pois tem a ver com o fato de eu ter estudado História. A maneira como ele se apropria de fatos e personagens históricos americanos, anônimos ou conhecidos, oficialmente relevantes ou cotidianos, é de uma inteligência tamanha que ultrapassa mesmo os limites da literatura e diz respeito ao modo como encaramos e estruturamos o mundo em que vivemos, seja no nível pessoal seja no nível social. Doctorow é mestre no processo de (re) construção da memória da sociedade americana, de como eles encaram e conhecem sua própria história, e não somente a história de grandes e celebrados eventos e personagens, mas também a história julgada menor, dos acontecimentos diários, dos que muitas vezes são apresentados apenas como massa sem rosto e sem importância. E um mestre no modo de tratar a memória, e sua constante transformação, como fator primordial na construção pessoal de seus personagens literários.

Em sua obra há a percepção clara de que não há barreira alguma entre o mundo ficcional e o mundo palpável – e não é que essa barreira seja tênue ou seja difícil definir o limite que separa ambos os mundos: na literatura de Doctorow esse limite simplesmente não existe, o escrito e o vivido são tomados como uma coisa só. E é aí que sua escrita se agiganta, personagens  que existiram realmente como o ilusionista Houdini, o General William Tecumseh Sherman, o casal Rosenberg e acontecimentos como A Feira Mundial de Nova Iorque, a Guerra Civil e a perseguição aos comunistas nos EUA misturam-se, sem hierarquia de importância, a outros personagens e fatos criados pelo autor. Na obra de Doctorow, não há distinção entre o que é criado e o que aconteceu realmente, entre o que é ficção e o que é verdade, pois tudo o é ao mesmo tempo. Nos seus livros, a memória de um adulto comum a respeito de sua infância é tão falha e cheia de buracos quanto à memória coletiva de uma sociedade a respeito de sua própria história, e, ambas, passíveis de intervenções e distorções, isto é, não há como definir o que é real e o que é  inventado, pois, na ficção assim como no mundo palpável, a realidade é inventada, constantemente.

Ou seja, como bom escritor que é, E.L. Doctorow consegue pensar através de suas histórias incrivelmente bem escritas e montadas, às vezes da maneira quebrada, não convencional, que caracteriza o Romance a partir da segunda metade do século XX, ou melhor, depois de Joyce, a forma como organizamos nossas vidas, e, numa visão geral, a forma como as próprias sociedades se fundam e se estruturam. Em todos os livros que li do americano, sempre me pus refletindo sobre as questões que, como muita dificuldade e esforço, me foram apresentadas no meu curso de História inteiro: qual o papel da memória no desenrolar de nossa existência social? Que tipo de escolhas e decisões nos define? Como sabê-las?

É preciso dizer que Doctorow tem um aguçado senso de historicidade e seus livros são peças raras de caracterização da vida nos EUA desde sua fundação. Os principais momentos que ajudaram a construir a imagem da América do Norte como a conhecemos são tratados em suas obras, desde o Velho Oeste até a Guerra do Vietnã.

Eu tenho especial ligação com o seu “O Livro de Daniel”, pois foi com ele que tive minha primeira experiência mais incisiva na Academia, sendo tema de um trabalho sobre o Romance Contemporâneo que apresentei em um desses congressos da vida, e que me dá muito orgulho, preciso dizer (e olha que não sou de sentir orgulho por muita coisa). Um livro bonito sobre uma história triste, e, acima de tudo, um livro que pensa com propriedade a experiência malsucedida e disforme do comunismo nos Estados Unidos no começo dos 1900.

No fim, eu o elejo como meu escritor favorito justamente porque, em última instância  a matéria prima da sua literatura é também a matéria prima do meu ofício: o passado, e sua explicação/apropriação pela História.

O Doctorow tem algumas boas entrevistas espalhadas por aí, e alguns bons textos a respeito de literatura e da vida. O site dele tem um material bem vasto para consulta. Querendo conhecer um escritor novo? Tá dada a dica.

1 – De acordo com os conceitos comumente utilizados por estudiosos, diferencio História (significando a disciplina) de história (significando conjunto de acontecimentos)

Malkmus, my hero

Essa maneira torta de ser, de tocar guitarra, de cantar, de escrever…

Um dos meus heróis da adolescência. Guardo comigo essa alegria quase infantil de ter visto o cara ali na minha frente pertinho realizando todas essas canções que só me trazem boas lembranças e sentimentos.

Stephen Malkmus é um compositor pop perfeito, é um pop de estranheza ímpar, mas, ainda sim, pop. Basta ouvir as canções dele no Pavement e na carreira solo. Mas ouça sem amarras.

Tem esse show na KCRW como divulgação do último disco dele com os Jicks, “Mirror Traffic”. Saquem a cara do tio solando sem palheta e cantando de olho fechado, fruindo música. É bonito.

Sobre Garage Rock, diversão e cansaço

(Mais um blog. O que eu posso fazer? O que vocês podem fazer? Quando der vontade de escrever, e sempre dá, estarei por aqui a falar sobre coisas diversas – música pop e literatura na maioria das vezes, não vou mentir.)

Pra começar, ó só doc. massa em três partes que veio a mim pelos links da vida.

Garage Rock é sempre legal demais, principalmente pela diversão que é ser jovem, ter disposição pra baderna e essas coisas. O doc. mostra essas bandas anos 2000 de algumas cidades americanas, e tudo meio que misturado: shows, bagunça, dificuldades, destemor, vontade de. Algumas das bandas são legais pra além disso, outras são só isso mesmo e acabou. Gostei de ter assistido por ter me feito lembrar de como é divertido e de como tem que ser exatamente assim. O problema pra mim é que em algum momento esse negócio todo enche o saco, tem todo um lance por trás que te consome todo, se tu não consegue balancear isso de alguma forma, cansa mesmo – digo pois sinto isso como alguém que ouve e faz garage rock: é quase inevitável.

Mas o doc. é bem mais que isso, claro, ele dá uma zoneada bem bacana sobre essa safra nova de bandas garageiras americanas, e todo o lance em volta: público, se virar pra shows, lançar discos, a volta dos singles e lançamentos em vinil, estrutura de selos pequenos, etc, etc, etc. Vale muito a pena ver!